Para uma página em branco

  ~Em sua obra Cidadela, Saint'Exupéry conta de dois ami- gos jardineiros que cuidavam de suas roseiras no silencioso en- tendimento que os unia. Daí, um deles precisou partir e, tempos depois, enviou uma carta que deixou o outro trêmulo de emoção. Estava lá escrito, apenas e tudo: já podei as minhas roseiras. Com isso, o que ficara sentiu-se, não só lembrado, mas unido no que era a essência da vida deles: o trabalho e o amor pelo que faziam. Contudo, surgiu um dilema muito grande na hora de respon- der a missiva, já que ambos eram de pouco dizer e profundo viver. Essa história me veio porque, com tanta informação, tantas for- mas de convivência e de aceitação da vida, como me comportar em situações extremas, como não ferir o próximo, gostaria de sin- tetizar, num texto, as experiências que necessito contar-fofocar para os outros. De como é importante falar no amor/desamor, na necessidade de gritar contra julgamentos vazios, se dou motivos para sentenças apressadas. E a inquietação do amanhã que, afinal, nao é tarefa que me cabe, na incompetência de colocar ordem nas mazelas do mundo. Sobre o que vou escrever numa página em branco, se muitos já o fizeram, desde os que brincam de viver, até messiânicos pregadores de novas e garantidas formas de levar   a vida? Como sintetizar meu horror às tragédias recentes da natu- reza, ventos, tempestades, uma vez que apenas sei dizer sobre o azul da tranqüilidade que busco, ou dos sóis que me fazem contemplativa nos fins de tarde? Como acertar em poucas linhas aquele coração infeliz, mais abandonado e injustiçado, fazendo-o acreditar que não está só, olha eu te entendo, viu? Como tentar dizer que, dia após dia, nes- ses anos todos, não estive menos esperançosa, não fiz meu cora- ção mais duro e insensível, apesar de? O dilema do cultivador de rosas é como o meu, já que tenho uma página para dizer que vivi, especialmente a plenitude de tudo o que está ao meu alcance, aprendi a aprender, cumpri meus ritu- ais, não piorei a qualidade das minhas relações humanas, embora tenha restringido a quantidade, e ainda sou capaz de acolher - que verbo bonito! - na hora certa os incertos gestos. Como o jardineiro, busco a essência e sofro na transforma- ção de todo o meu aprendizado em palavras que não sejam apenas para preencher uma página em branco. Descubro que viver mais é uma dádiva, então é preciso amealhar sabedoria, especialmente a simplicidade do amor que nada pede, nada julga, e a tudo aceita e perdoa. E, como a síntese da resposta do jardineiro que escreveu apenas: também já podei as minhas roseiras, sei que é só isso que importa. Tudo isso: também, ligação, solidariedade. Não foram as chuvas, o sol forte, os ventos que vergaram as plantas o que conta- va. Ao serem podadas, o mais ficou para trás, perdeu a importân- cia: estavam vivas as roseiras. Assim, entendo por que ninguém quer saber das tempesta- des que enfrentei até hoje, apenas se eu trouxe o navio. Ele está aqui, então posso atravessar o tempo porque tenho, apesar de tudo, a fé intacta. Só e tudo isso cabe numa página inteira ...

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