Mais confiantes ao portar a Carteira de Nome Social (CNS), travestis e transexuais estão, ainda que aos poucos, vencendo a estigmatização e saindo das margens de ambientes de ensino, como escolas, universidades e cursos profissionalizantes. Um passo importante foi dado este ano pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), ao permitir que os candidatos ao Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) solicitassem ser tratados, na data da prova, pelo nome com o qual se identificam no dia a dia, independentemente do gênero de nascença. O órgão assegura que as 95 pessoas que pediram pelo serviço – inédito em 15 anos de aplicação do teste – serão atendidas nos dias 8 e 9 de novembro.
O número surpreende positivamente a presidente da Associação de Travestis e Transexuais do Rio Grande do Sul (Igualdade-RS), Marcelly Malta, ainda que represente apenas 0,001% do total de inscritos, que ficou em 9,5 milhões.
— É bastante gente. Em geral, a discriminação que as pessoas trans sofrem no ensino básico, tanto pelos professores quanto pelos colegas, fere a autoestima e faz com que elas nem pensem em continuar os estudos numa universidade — aponta a ativista.
De acordo com a Assessoria da Diversidade da Secretaria Estadual de Educação, sequer há levantamento de estudantes travestis e transexuais nas escolas estaduais, embora vigore a orientação de aceitar as CNS que forem apresentadas.
A decisão do Inep em relação ao Enem pode nortear medidas para evitar que se repitam situações semelhantes à que a cabeleireira Mickaela de Oliveira, 39 anos, vivenciou ano passado. Buscando uma vaga no curso de Tecnologia em Gestão Ambiental na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), onde mora, ela dividiu sala com cerca de 30 homens – que tinham em comum o mesmo nome de batismo. A aparência de Mickaela desassossegou os concorrentes.
— As pessoas se chocam, ainda mais porque sou superfeminina. Não me senti à vontade com todos aqueles olhares de estranhamento. Isso acabou influenciando no meu desempenho no Enem — relata ela, reprovada no exame.
Mais de 500 pessoas buscaram carteira Mickaela é uma das 531 pessoas que, de 2012 até agora, tiraram a CNS junto ao Instituto-geral de Perícias do Estado. O documento, embora muitas vezes encarado com curiosidade, foi aceito no momento da inscrição em um curso de desenho, certificando sua presença e tratamento enquanto mulher.
A possibilidade de solicitar a carteira foi instituída pelo decreto estadual 49122 — à época inédito no Brasil e hoje copiado por outras administrações estaduais, como a do Pará — e não significa alteração no registro civil. O Supremo Tribunal Federal (STF) está próximo de julgar se é possível uma pessoa trans alterar o gênero em sua documentação oficial sem ter passado por cirurgia de redesignação de sexo, decisão que deverá ser seguida pela Justiça em processos desta natureza. Até lá, travestis e transexuais dependem da boa vontade de cada juiz para ter — não só na CNS, mas também no RG — a reafirmação da forma como se veem no mundo. E como gostariam de ser vistos.
Impasse às vésperas da formatura Foto: Lauro Alves
Como a Carteira de Nome Social é um serviço prestado pelo Estado — vá lido somente em órgãos públicos estaduais –, a identidade de gênero encontra barreiras na esfera privada. Na véspera da formatura em Artes Visuais pela Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), a então estudante Priscilla Fróes recebeu a notícia de que seria chamada pelo nome civil, masculino, na hora da entrega do diploma. Uma decepção para quem já assinava chamadas como Priscilla.
– Não queria que mudassem nome no diploma, mas exigia sensibilidade no trato pessoal, ainda mais em um momento tão importante – conta.
A Secretaria Estadual de Justiça e Direitos Humanos, junto à Coordenadoria de Políticas da Diversidade de Canoas, onde se localiza o campus, teve de intervir para que a universidade acatasse a solicitação. O pró-reitor acadêmico da instituição, Ricardo Rieth, afirma que toda documentação oficial deve seguir os dados do RG, mas que, verbalmente, sempre se respeitou o desejo do formando em relação ao nome social. Ele atribui o incidente ao fato de que a situação era inédita no curso de Artes.
— Nem todos os coordenadores já vivenciaram essa situação — justifica.
Nas universidades federais, núcleos de apoio à diversidade — como o Nupsex e o G8, da UFRGS — apontam um caminho mais tolerante.
— Queremos que esse público seja reconhecido pelo nome social nas chamadas, no cartão da universidade, nas plataformas de ensino a distância, enfim, em todos os lugares em que o nome precisa ser exposto. E garantir que a pessoa possa usar o banheiro que quiser — afirma Eric Seger, bolsista do Nupsex.
Se o uso do nome social for regulamentado, julga ele, travestis e transexuais serão encorajados a estudar.
— O desrespeito à identidade de gênero causa transtornos psicológicos. Se isso mudar, será um estímulo à permanência na universidade — complementa o advogado do G8, Alexandre Porto.
Modelo hétero regula ambiente educacional
Coordenadora de Políticas LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros) da Secretaria Estadual da Justiça e dos Direitos Humanos, Marina Reidel afirma que há um contexto já consagrado de exclusão desse público no ambiente escolar. Segundo ela, 90% das pessoas trans não têm Ensino Fundamental completo. E a culpa é da intolerância.
— A heteronormatividade (quando a heterossexualidade é considerada o padrão normal, enquanto qualquer outra opção sexual é marginalizada) é o que regula o sistema de educação tradicional. Os professores têm dificuldade em lidar com pessoas diferentes, em colocá-las no mesmo patamar das outras e em tratá-las como tratariam qualquer aluno. O que está faltando é diálogo — diz ela, que é mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Conforme Marina, a CNS é uma tentativa de suprir essa demanda constante pela visibilidade. Uma das ações da secretaria é trabalhar a sensibilização: reivindicar que todas as escolas reconheçam o nome social de travestis e transexuais, que os postos de saúde aprendam que o RG é dispensável, que policiais saibam, no momento da abordagem e que viver um gênero diferente do biológico não é anormal.
Mudanças em curso
— O texto que regulamenta a política de uso do nome social na UFRGS está pronto para ser votado pelo Conselho Universitário.
—Está em análise pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias o projeto de lei João W Nery (homenagem ao primeiro homem trans a ser operado no Brasil), que permite que a pessoa mude seu nome de acordo com o gênero com o qual ela se identifica. Se aprovada, a lei também vai permitir que maiores de 18 anos façam cirurgia de mudança de sexo sem que seja obrigatória análise psicológica ou autorização judicial.
—O Supremo Tribunal Federal está por decidir se é possível um transexual alterar o gênero em sua documentação sem ter sido submetido à cirurgia de mudança de sexo.
Fonte: Diário de Santa Maria.