Falece professora Lia Achutti, aos 91 anos
Ceura Fernandes
Num desses finais de tarde de Feira do Livro, e tantas opções culturais na praça, saí de casa com algumas boas alternativas, sem muita certeza de onde ir. Mas, meu inconsciente, que me conhece mais que eu, vê o que pesa mais, e me dirige à Sala de Exposições Angelita Stefani, da Unifra. Pesou a gratidão e o reconhecimento a uma pessoa discreta que contribuiu para a cultura da cidade e que, apesar da idade, continua ativa.
Fui na abertura da exposição de Lia Achutti, a Dona Lia, antiga e elegante professora de uma inesquecível geração de mestres do Centro de Artes e Letras da UFSM. Chego quando inicia a apresentação de um vídeo em que a artista fala do seu trabalho e, por acréscimo, da vida. Atentos, assistíamos bebendo da sua sabedoria. Tranquila e humilde, mas altiva, ela, na verdade, fala de realização e da arte de viver. Ao final, emocionada, nos emociona também com seu exemplo vivo.
E, antes mesmo de ver o que estava à mostra, já teria valido a pena ter ido. Mas, acendem-se as luzes e, atendendo convite de Luiz Gonzaga Binato, o curador da exposição, o público começa a encantar-se. Como há muito não se via em vernissage, era uma alegria coletiva pela surpresa com o que estava ali. Era o encantamento com o ‘jardim’, singelo e bonito, feito por Lia. Usando panos, linhas e agulhas, ela tece uma arte bem elaborada, com detalhes, combinação de cores e formas que sensibiliza pela delicadeza. Ainda mais quando se relaciona a obra à idade da autora: 83 anos de sensibilidade.
Como qualquer produto da cultura, a arte é um espelho do seu tempo. Coerente com o ritmo que se vive, algumas manifestações artísticas têm sido, digamos, apressadas. E, muitas vezes, com esse nome, vê-se uma produção atropelada, discutível, em que, em detrimento da qualidade, confunde-se o diferente com o criativo, o impactante com o artístico. Mas, isso, naturalmente, faz parte do processo evolutivo. E é bom que tenhamos liberdade para expressar tudo, de patologias emolduradas a ensaios de aprendizes, até o refinamento da espiritualidade materializada em forma de arte.
Mas é nesse mesmo tempo de hoje que uma exposição com qualidade técnica e sedução estética, com simplicidade comovente e requinte de detalhes, é algo alentador. Ou seja, consola a dor que sentimos pela preocupação com a falta de cuidado e displicência de alguns segmentos, em diferentes esferas artísticas, da música à plástica.
Talvez fosse interessante que alguns apressados fazedores de arte percebessem a importância de combinar dedicação, persistência e humildade. O resultado pode ser qualidade e beleza, como dá pra perceber na exposição de Lia. Há quem diga, muito propriamente, que talento é mais dedicação que inspiração. Quando as duas coisas se juntam, o resultado quase sempre é ótimo. Em tudo que se faz. E quem lucra é a própria sociedade, somos nós mesmos que podemos nos deliciar com expressões de qualidade. Mas, o tempo é o melhor crítico. Ele reconhece e aplaude, de geração para geração, o que permanece. O que sobreviverá a barreira dos anos, ou não.
Pois bem, estávamos lá, diante da exposição de Lia Achutti. E não era por educação ou boas maneiras que olhávamos para o resultado do seu trabalho. Olhávamos pelo prazer estético, e também ético, que provocava. A superposição de tecidos, cores e pontos surpreendem pela finesse como a própria finesse da autora. Uma arte simples e bonita – alguns trabalhos até diminutos – capaz de provocar admiração, de crianças até aos contemporâneos de Lia. Outro detalhe que chamou a atenção foi a adequação dos títulos à respectiva obra. ‘Perfeitos!’ dizia Juan Amoretti. E todos concordávamos com ele. Por que lá estávamos vários ex-alunos e colegas da professora-artista.
Sim, é possível que possamos estar tendo uma crise de saudosismo. Mas com prazer e sem constrangimento. Ignorando modismos, viva o bonito, o bem feito atemporal. Seja do estilo que for: clássico, moderno, pós-moderno, popular, contemporâneo, digital... Há um não sei quê que pode ser chamado de harmonia, equilíbrio, prazer estético ou coisa que o valha. O importante é que a arte fale por si, sem precisar de outros recursos, aportes de sustentação, para que toque nossa alma. Arte boa, seja do gênero que for, geralmente fica, ultrapassa o momento histórico. As outras, claro, têm lá também seu valor do momento. Mas, se não evoluírem, não resistem ao teste do tempo, não têm longevidade.
A pergunta que todos se faziam – e era um público seleto – é como Dona Lia, com seus belos 83 anos, consegue fazer o que faz da forma que faz. Esta é a arte maior: continuar ativa e produzindo, enquanto tantos da sua idade já desistiram de participar da vida. O seu exemplo de vitalidade e a beleza de seu trabalho é, também, um puxão de orelha pra essa meninada que está por aí sem saber o que fazer, fazendo qualquer coisa. Ou, o que é pior, gastando a vida com bobagens.
Valeu a escolha! Foi prazeroso ver o encanto delicado do Jardim de Panos e Linhas, feitos pelas mãos de Lia Achutti, lá no conjunto III da Unifra.
(Crônica publicada em maio de 2012, no jornal A Razão).