Crônica: "Bidu, o chorão", pela professora Eloísa Antunes Maciel

[caption id="attachment_6268" align="aligncenter" width="600"]Foto reprodução internet Foto reprodução internet[/caption]   Havendo adquirido uma pequena propriedade rural, convidei um irmão meu para habitá-la na condição de morador solitário. Todavia, pensando em amenizar essa situação, tratei de satisfazer uma preferência por ele mantida desde a infância: a companhia de um cão, talvez de dois... No entanto, como eu estava realizar algumas benfeitorias no local, não me aventurei à compra de um determinado cão de raça.  Embora mantendo essa decisão, permaneci atenta a anúncios que viessem a contemplar a minha expectativa, ou seja, que entre as características geralmente mencionadas na maioria dos anúncios sobre cães, fossem destacadas pelo menos três dessas características: capacidade de adaptação a um “novo território”, bem como algumas qualidades que identificam um cão capaz de exercer as funções de vigia nesse território, quais sejam: astúcia, faro aguçado, e, sobretudo, poder sinalizador frente a previsíveis invasões... Nesse afã, deparei-me com certo anúncio que parecia contemplar às minhas modestas expectativas. O Hospital Veterinário da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) convidava possíveis interessados a visitarem determinado “recanto” (improvisado e temporário)  onde uma equipe de estagiários da área desenvolvia  etapa culminante de um projeto que teve por objetivo acolher, curar, tratar e disponibilizar para adoção cães encontrados em estado de abandono e carência nas proximidades daquela instituição. Essa valorosa equipe também havia acolhido outros cães, estes em estado de quase morte, devido a atropelamentos e outras crueldades praticadas por seres (des) humanos... Informada sobre o horário de atendimento pela via telefônica, contatei com uma estagiária que, solícita, prestou-me informações bastante consistentes. De minha parte, informei sobre as características que pretendia identificar no cão que viesse a adotar. A gentil estagiária me descreveu os predicados de uma fêmea devidamente castrada, de raça não definida, porte altivo, astuta, faro aguçado, boa sinalizadora e bastante dócil sob condições de acolhimento... Deveria ter a idade presumida de 8 ou 9 meses... De posse de informações sobre o horário de atendimento in loco, dirigi-me ao Hospital, mais precisamente ao recanto onde os cães aguardavam seus prováveis futuros donos... Deparei-me com um quadro quase enternecedor: uma equipe de estagiários, todos sentados em semicírculo (formado no hall de entrada do prédio), dividia-se entre “eles e elas”... Eles, os rapazes, seguravam os cães machos, geralmente maiores e mais astutos; elas seguravam suavemente as fêmeas -- e estas pareciam estar dispostas a saudar os recém-chegados, fazendo “festinhas” e examinando atentamente quem delas se aproximasse. Ao identificar a estagiária com a qual eu havia falado ao telefone, identifiquei também a fêmea cujas características informadas motivaram a minha ida àquele local.  Expectativa frustrada, pois a cadelinha parecia fascinada por outra candidata que dela havia-se aproximado e não me deu a mínima atenção... Após alguns minutos de espera, olho para o lado esquerdo do semicírculo -- o lado dos rapazes...  E um destes segurava pela coleira um cão de porte avantajado, mas não corpulento... Pela firmeza como o estagiário o segurava, cheguei a pensar tratar-se de um cão de “temperamento imprevisível”, alimentando algum receio. No entanto, ao olhar detidamente para aquele cão, notei que ele me fitava com um olhar que me pareceu súplice e submisso, parecendo dizer: “Leva-me... O cão de que precisas sou eu... Leva-me...“ Não hesitei, nem um segundo. Decidi levar o bicho para a casa (ou melhor, para a casa de uma irmã, pois morava em apartamento e só poderia levá-lo para a minha pequena propriedade, no interior, na semana seguinte). Preenchidas as formalidades regulamentares, instalei o cão no banco traseiro do carro e atribuí-lhe o nome de Bidu, em homenagem a um saudoso cãzinho de um sobrinho meu. Decorrido algum tempo da curta viagem, ocorreu o primeiro imprevisto: O Bidu caiu em choradeira e defecou por todo o banco do carro... Atribuí o fato a um presumido estranhamento, devido à mudança repentina de ambiente... Na semana seguinte, levado para o interior, no mesmo carro, Bidu não defecou no banco e não emitiu nenhum sinal de estranhamento ao ser introduzido nesse novo ambiente. Meu irmão (caseiro do local) ficou muitíssimo entusiasmado... Acreditou haver ganhado um companheiro para muitos anos... E Bidu foi–se instalando nas dependências externas do pequeno imóvel existente no local, e não rejeitou alimento que lhe foi oferecido na ocasião. Nos dias que se sucederam, recebeu apenas doses (recomendadas) de vermífugo, além da aplicação de um anti - pulgas  especial, uma vez que nada mais foi - lhe prescrito, pois ele possuía um atestado de sanidade (ou de cura...) em poder do hospital que o tratou. Passados mais alguns dias, algo inusitado veio a ocorrer: Bidu recusava-se alimentar-se quando preso corrente que foi adotada como medida preventiva, indispensável nessa fase de adaptação. Seu choro fizera-se agudo e compulsivo, mesmo após ser liberado da dita corrente. Parecia sentir muito frio... Algumas mudanças climáticas extemporâneas ocasionavam noites e manhãs bastante frias, fato que ele possivelmente teria estranhado. Como medida de urgência, uma casa de proporções avantajadas foi projetada graças à gentileza de um vizinho, sendo construída em curto espaço de tempo, a fim de que Bidu fosse confortavelmente abrigado. No entanto, a choradeira continuava cada vez mais intensa e freqüente... Estaria ele desnutrido - e sua temperatura seria efeito dessa carência?... Eis a solução prevista: um composto de ração devidamente balanceada, contendo ingredientes “de peso”... Contudo...  Bidu continuava a chorar... E a chorar cada vez com mais intensidade e frequência... Meu irmão optou por liberá-lo totalmente, retirando a coleira que o identificava, de modo que pudesse sentir-se livre, leve e solto e (se preferisse) passear pela vizinhança da pequena chácara. Entretanto, um fato novo sobreveio: Bidu sumia em dias alternados, inicialmente; depois por dois ou três dias e, finalmente por sete ou mais dias, até sumir por um mês inteiro... Numa certa noite em que eu me encontrava no local, ouvi um ruído discreto (não mais um choro...). Era Bidu. Denotava não estar faminto, mas comeu algo e ficou de “visita” por mais dois dias, repetindo essa façanha por uma ou duas vezes, até que sumiu de uma vez por todas... Para nós (meu irmão e eu) ficou interrogação: Que houve com ele?  Teria morrido, talvez atropelado?... Cerca de seis meses se passaram. Certo dia, meu irmão estava a tratar o jardim frente à chácara quando passou uma “senhora carreta” à moda antiga, com cavalos à frente e toda uma cachorrada atrás... E numa das fileiras centrais em que a cachorrada desfilava, meu irmão reconheceu Bidu... Estava alegre, lépido e faceiro, denotando estar perfeitamente integrado àquela situação. Ante a tão radical mudança, decidi interrogar diversas pessoas da localidade, mencionando as características daquele cão alegre da carreta... Depois de diversas tentativas, consegui obter explicação bastante provável: Aquele cão que, por alguma desdita fora afastado do seu habitat natural, teria retornado àlguma estância das redondezas, onde estaria desfrutando de um aconchegante fogo de chão no inverno, comendo carcaças jogadas ao pasto, bebendo água em vertentes e “apostando” pegas com outros cães de sua mesma origem e condição... E no verão?... A resposta foi irretorquível: estaria igualmente feliz, agora desenterrando ossos reservados no Inverno e correndo atrás de bezerros e carneiros no território do seu velho-novo habitat.   E, de quebra, estaria acompanhando a cachorrada gaudéria em longas carreteadas pelas estradas vicinais do seu rincão...   *Professora aposentada da UFSM.  

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