Afetos e Desapegos - uma crônica de Celina Fleig Mayer

desapego   Celina Fleig Mayer Por motivo de mudança – ocorreu-me algo que deve acontecer com os guardadores e “colecionadores¨de registros afetivos. Recortes de jornais, revistas, tudo o que nos prometemos rever “um dia”, e precisam ser descartados sem essa releitura. Deparei-me, em especial, com dezenas de cartas amareladas de uma amizade que cultivei certo tempo. Eram de uma colega de cursinho  de Porto Alegre, que conheci graças a uma mudança de S.Maria para a capital, com o sonho de cursar  Jornalismo ou Psicologia. Saíamos do Menino Deus – morando a umas quadras distante uma da outra – no mesmo bonde. Nasceu daí uma amizade muito produtiva para os dois lados. Foi bom para minha auto-estima toda aquela admiração que ela me devotava. Um dia, nós de pé no coletivo e ela me olhou  e exclamou: “Como tu és bonita”! Uma bobagem, diria qualquer pessoa, só que foi muito bom para mim que, exatamente naquela manhã, tivera dissabores. Ela não escondia sentimentos, não se “ economizava ”, como costumamos fazer, quando poderíamos distribuir pequenas alegrias, assim, aos que amamos, dizendo-lhes algo agradável. Na época, eu não tinha consciência disso, só vim a saber agora, ao reler alguns trechos das tantas cartas que precisei destruir com muita papelada mais. Perdi-a, não sei quando, de vista. Veio o casamento, as filhas e costumamos ter prioridades, perdendo tanta riqueza de amizades boas que deviam ser eternas. Numa das cartas – quando saí de Porto Alegre e, casada, fui morar em S.Leopoldo, a nossa comunicação passou a ser escrita. Numa delas, escreveu o que bem demonstrava o humor e o senso crítico da sua personalidade: “E tu não entendes o que eu pretendo fazer na vida?  Eu acho – porque ainda não tenho certeza – que não pretendo coisa nenhuma. Viver até os 40, 50 o mais tardar. Trabalhar, filosofando até lá, com o conforto  devido e necessário à minha “magreza”. (Magro era um nome comum na gíria da época). “Agora quem não entende sou eu. Por que tu não achas lamentável ter nascido? Eu te pergunto o que tu vais fazer da tua vida? O que ela te trouxe, senão muita experiência a partir da negatividade de tudo e de quase todos? E ela prossegue, lá adiante: “E o que eu analiso não é a vida aqui ou ali, no Brasil ou na China, mas a vida em si mesma. É, quando a gente olha por trás vê tudo que muda e que vai mudando inevitavelmente. E nisto tudo – que é a vida – ou tu aceitas e dizes estar vivendo, ou tu te revoltas e dizes estar vegetando. De qualquer maneira, a vida não é opção, e tudo o que é imposição não presta, podes observar”. “Quanto às nossas diferenças” – ela, classe média alta, não precisava trabalhar para estudar – “não te preocupes em avançar o sinal, porque eu apito em seguida e te dou multa”. “Gostaria que tu entendesses o seguinte:  eu não deixei a religião por simples medinho. É justamente o contrário. Quando perdi o medinho é que deixei a religião. E isso não aconteceu de um dia para outro como pensas, mas foi um longo processo. Eu tenho uma tia que diz que fé não se compra em armazém. De pleno acordo! E o que sustenta religião – qualquer que seja – é a fé”. No momento em que se procura racionalizar a fé, como eu fiz, ela acaba, vira nada. E as coisas começam a aparecer de tudo quanto é lado, com um sentido novo. Elas são mais claras, agora...agora eu posso ser eu mesma, livremente, sem pensar que sou isso ou aquilo porque Cristo ou Buda quer. Eu faço e penso a partir de mim mesma, sem me preocupar com os mandamentos ou o diabo a quatro. Nesse sentido posso ser muito mais autêntica, porque sou livre, entendes? Perdi minha amiga de vista, de cartas, de contatos. Era tão diferente em tudo, menos na facilidade de se comunicar, dizer-se. E os escritos amarelados pelo tempo – creio que ela viveu além dos 40 ou 50 anos e está achando bom – fizeram com que perdesse tanta inquietude  dos seus, então 18 anos. E como não posso guardar o acúmulo de tantos registros do passado,(mudanças são sinônimo de desapegos), reler uma carta dessas me fez sentir uma vontade imensa de revê-la. Talvez a encontre no Facebook, uma senhora séria e ajuizada, cheia de certezas. Não mais todos esses inteligentes questionamentos que eu, na época e, também hoje, não saberia responder.   *Jornalista

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